Depois de meses de ferrugem, sem escrever, outro dia, estava matutando um pouco sobre a relação do cristão com as artes (música, literatura, teatro, dança, artes plásticas, e por aí vai). Saiu isso:
No século XVIII, um cantor, compositor e maestro (ele tinha mais qualificações, mas listar todas deixaria esse texto muito grande) alemão escreveu uma peça intitulada “A Paixão Segundo São Mateus”. À época, a crítica não deu atenção a esse oratório com mais de duas horas de duração, que contava a história da crucificação de Jesus. Nos séculos seguintes, contudo, o mundo se rendeu àquela que foi classificada como uma das maiores obras de todos os tempos da música clássica.
Até o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, um crítico ferrenho da religião cristã, reconheceu o valor daquela peça musical e escreveu: “esta semana ouvi três vezes a Paixão Segundo São Mateus e a cada vez com o mesmo sentimento de admiração. Quem desaprendeu totalmente a cristandade tem a chance de ouvi-la como um Evangelho”.
O compositor do oratório, Johann Sebastian Bach, cravou seu nome na história das artes. Sua genialidade, hoje, é inquestionável. Bach era cristão protestante, criado na doutrina calvinista, ensinada a ele pelo pai. Durante anos, ele atuou como músico na corte do príncipe calvinista Leopold Köchten. E ao longo de sua profissão – de carreira e de fé – ele escreveu melodias e versos que até hoje impressionam. Não sei descrever bem o que acontece comigo toda vez que ouço a melodia de “Jesus, Alegria dos Homens”, nem o que senti quando entendi do que tratavam seus versos: “Jesus, alegria dos homens, santa sabedoria, fulgurante amor; criadas por Ti, nossas almas aspiram elevar-se à luz eterna”.
E eu com isso?
Li rapidamente a biografia do músico alemão essa semana e fui levado a pensar, por alguns momentos, na relação entre o cristão e as artes, ou, de modo mais abrangente, entre o cristão e sua carreira. Pode me chamar de pessimista, mas cheguei à conclusão de que povo evangélico de hoje (de ontem e, talvez, até de anteontem) vive uma crise de produção, salvo exceções. Não me refiro à produção “gospel”, essa há aos montes. Também não falo de obras “cristãs” apenas. Mas produção artística e intelectual de qualidade, fale ela de Deus ou não. Como o mundo lá fora é produtivo! E como a igreja, de repente, ficou satisfeita em ser mediana.
Concordo que usar o exemplo de Bach talvez seja covardia. Mesmo nos dias dele, provavelmente seu caso era único, ou um dos poucos. Mas é preciso muito cinismo para discordar de que falta honestidade intelectual à maioria dos cristãos dos nossos dias. Seja nas artes, seja em qualquer profissão. Deus, desde os primeiros registros que permitiu que tivéssemos a seu respeito, se revela como alguém que preza pela honestidade intelectual. Ele é o Deus que se dedicou ao ato criativo e “viu que ficou muito bom”. É o Deus que poderia ter feito o universo de uma vez só, em um estalar de dedos, ou no emitir de uma palavra. E poderia ter sido uma obra bem mais simples, que apenas nos bastasse para sobreviver, e isso já seria mais do que merecemos. Mas ele, bondosamente, elaborou o sistema complexo, do qual conhecemos apenas um ínfimo percentual. Um cosmo que vai além do que o pensamento alcança e um microcosmo igualmente surpreendente. E em um ato de suprema graça, Deus se dedicou a descrever a nós o passo a passo de um intenso e detalhado trabalho. E depois convidou o homem a fazer parte desse processo criativo. “Venha, agora você: dê o nome que quiser a todos esses animais, um por um.”
Naquela tarefa, que não era nada simples, manteve-se o padrão de qualidade. Deus havia feito um mundo “muito bom” e sua expectativa com relação ao trabalho do homem era a de que, dentro dos recursos limitados da criatura, o resultado também fosse satisfatório. E se hoje aquele animal que causa alergia à minha esposa é chamado de “gato”, e não de “cachorro 2”, é porque houve empenho e honestidade intelectual por parte do homem na tarefa da qual Deus o incumbiu. Adão tinha determinados recursos e capacidades e usou-os plenamente. Não se acomodou, nem fez de vítima por saber menos que Deus. E tenho certeza de que ele fez aquilo tanto por prazer quanto para agradar ao Criador que o havia comissionado.
Fazer bem feito
Durante centenas de anos, a igreja deteve boa parte da elite intelectual do mundo. Quero crer que isso não teve relação apenas com o fato de a sociedade desse período ser teocrática. É claro que isso dava ao clero o monopólio do conhecimento, então, era de se esperar que o celeiro das grandes ideias estivesse mesmo ligado à igreja (ou, pelo menos, que fosse financiado por ela). Mas o filósofo e teólogo americano Francis Schaeffer traz outras ponderações para essa relação. Ele observa que houve um tempo em que os homens, ainda vivendo sob o norte dos absolutos, sobretudo no campo moral, entendiam o dever de expressar o “belo” e o “verdadeiro”, ambos tendo sua origem e essência em Deus. E eles faziam isso com afinco, independente do âmbito ao qual essa expressão estaria exposta. Ao longo dos séculos, isso se perdeu.
Que a lembrança de Bach nos estimule a refletir sobre nossa postura quanto ao que realizamos. O compositor alemão era, sim, cristão (é verdade que teve uma vida de muitos altos e baixos), mas sua produção artística transcendeu o território eclesiástico. O empenho que dedicava às suas composições e ao aprimoramento do ofício, inclusive dos instrumentos que usava, o tornaram notório mesmo a quem nunca passou perto de uma igreja. Talvez ele tenha entendido o que todos nós deveríamos assumir como objetivo de vida. O que quer que tenha nos chegado à mão para fazer, fomos chamados a empreender “conforme nossas forças”. Não interpretemos essa expressão como “faça o que der, está bom assim, o importante é a intenção”. Devemos usar toda a nossa força e capacidade, com excelência.
Deus chamou cristãos a realizarem as mais diversas atividades e os orientou a trabalhar por um resultado que seja “muito bom”, de acordo com a capacidade que concedeu a cada um. Os que não conhecem a Deus e não partilham de comunhão com Jesus conservam, mesmo assim, algo da imagem e semelhança com o Criador. Eles frequentemente nos encantam com sua criatividade e habilidade em consertar carros ou concertar orquestras. E nos desconcertam com isso. Como eu, que sou testemunha do que é “muito bom”, posso me contentar em fazer algo apenas passável? Que respeito posso conseguir dos que repararem nessa postura? Qual será o impacto do meu testemunho? E, finalmente, o que Deus pensará dessa atitude? Que essa reflexão seja nosso primeiro passo em busca de mais honestidade e integridade intelectual no que quer que façamos.